26/08/2015

Em Memória de Bento da Cruz - O Homem nos bosques da ficção

Em Memória de Bento  da Cruz - O Homem nos bosques da ficção


"Caia a tarde e eu regressava das Caldas de Chaves onde tenho estado em tratamento de águas quando, ao desembocar na Rua Direita, ouvi um violino. Ou seria um violoncelo? Por esta hesitação se podem avaliar os meus conhecimentos musicais. Para além do realejo e do bombo, não sou homem de distinguir um violino Stradivarius de uma viola chuleira. Mas lá por não perceber nada de música, não quer dizer que a não saiba apreciar. E aquela que enchia a Rua Direita era aquilo que os poetas julgam que é o canto da sereia.


Quedei logo de nariz no ar e ver de onde é que aquilo vinha. Alguma escola de música? Não. Aquilo não era de principiante. Alguma jovem apaixonada e triste? Mas onde é que hoje se encontra uma jovem triste? Andam todas alegres e despreocupadas como andorinhas. Alguma velha saudosa de amores antigos? Como se as velhas não tivessem mais em que pensar.

Nisto especulava eu quando descobri, à esquina da “Sociedade Flaviense”, um pequeno grupo de mirones. Aproximei-me. Um indivíduo ainda novo montara ali o seu guinhol de feira: uma figura feminina, delicada, gentil, vestida de princesinha da Baviera, a fingir que tocava violino. Um trecho de Mozart, assim me pareceu, executado na perfeição. Pérolas a porcos. A maioria dos transeuntes passava indiferente. Que o digam três moedas de cobre a reluzir aos pés da grácil e aristocrática violinista.

Eu também me não detive nem descosi, com vergonha o confesso. Mas indiferente não fiquei. Aquela suave melodia acompanhou-me até ao cimo da rua. Mesmo depois de ter deixado de a ouvir, ela persistiu no meu ouvido durante muito tempo e fez-me saudades. Da flauta do Virgílio, para não ir mais longe.

Que ninguém fique a pensar que me estou a referir ao poeta latino do mesmo nome, o melhor tocador de avena de todos os tempos. Não. O Virgílio de que falo era um adolescente dos seus catorze ou quinze anos, servia em casa do meu vizinho Pitrasca e tinha uma flauta de cana.

Não estou em condições de dizer se o Virgílio era bom ou mau executante. O que sei é que, quando ele ia com o rebanho e se punha a tocar flauta na solidão dos montes, eu quedava pensativo. É caso para dizer que a minha inclinação para a poesia bucólica vem de longe. Dos meus seis ou sete anos, idade em que, influenciado pelo Virgílio, pedi uma flauta à minha mãe.

Ela foi à feira, vendeu uma dúzia de ovos e comprou-me um pífaro de barro. Comecei logo a ensaiar. E ao cabo de um mês já tocava o tiroliro razoavelmente."

PROLEGÓMENO,  30 de Agosto de 2009.

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