Em Memória de Bento da Cruz - O Homem nos bosques da ficção
"Caia a tarde e eu regressava das Caldas de Chaves onde tenho
estado em tratamento de águas quando, ao desembocar na Rua Direita, ouvi um
violino. Ou seria um violoncelo? Por esta hesitação se podem avaliar os meus
conhecimentos musicais. Para além do realejo e do bombo, não sou homem de
distinguir um violino Stradivarius de uma viola chuleira. Mas lá por não
perceber nada de música, não quer dizer que a não saiba apreciar. E aquela que
enchia a Rua Direita era aquilo que os poetas julgam que é o canto da sereia.
Quedei logo de nariz no ar e ver de onde é que aquilo vinha.
Alguma escola de música? Não. Aquilo não era de principiante. Alguma jovem
apaixonada e triste? Mas onde é que hoje se encontra uma jovem triste? Andam
todas alegres e despreocupadas como andorinhas. Alguma velha saudosa de amores
antigos? Como se as velhas não tivessem mais em que pensar.
Nisto especulava eu quando descobri, à esquina da “Sociedade
Flaviense”, um pequeno grupo de mirones. Aproximei-me. Um indivíduo ainda novo
montara ali o seu guinhol de feira: uma figura feminina, delicada, gentil,
vestida de princesinha da Baviera, a fingir que tocava violino. Um trecho de
Mozart, assim me pareceu, executado na perfeição. Pérolas a porcos. A maioria
dos transeuntes passava indiferente. Que o digam três moedas de cobre a reluzir
aos pés da grácil e aristocrática violinista.
Eu também me não detive nem descosi, com vergonha o
confesso. Mas indiferente não fiquei. Aquela suave melodia acompanhou-me até ao
cimo da rua. Mesmo depois de ter deixado de a ouvir, ela persistiu no meu
ouvido durante muito tempo e fez-me saudades. Da flauta do Virgílio, para não
ir mais longe.
Que ninguém fique a pensar que me estou a referir ao poeta
latino do mesmo nome, o melhor tocador de avena de todos os tempos. Não. O
Virgílio de que falo era um adolescente dos seus catorze ou quinze anos, servia
em casa do meu vizinho Pitrasca e tinha uma flauta de cana.
Não estou em condições de dizer se o Virgílio era bom ou mau
executante. O que sei é que, quando ele ia com o rebanho e se punha a tocar
flauta na solidão dos montes, eu quedava pensativo. É caso para dizer que a
minha inclinação para a poesia bucólica vem de longe. Dos meus seis ou sete
anos, idade em que, influenciado pelo Virgílio, pedi uma flauta à minha mãe.
PROLEGÓMENO, 30 de Agosto de 2009.
Sem comentários:
Enviar um comentário